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Instituições de ensino superior batalham para conseguir a mudança na base de cálculo da Lei de Cotas para a contratação de deficientes
Rachel Bonino
Desde 1991, a Lei de Cotas (nº 8.213) determina que todas as empresas brasileiras com mais de cem funcionários devem ter de 2% a 5% de deficientes contratados no seu quadro de funcionários. Segundo o IBGE, os portadores de algum tipo de deficiência representam 14,5% da população. Passados 15 anos da entrada em vigor da lei, gestores de empresas dos mais variados setores apontam uma série de empecilhos que inviabilizam sua colocação em prática. O setor do ensino superior não fica de fora.
Diferentemente de outras empresas, nas quais normalmente se contrata alguém por período integral, nas instituições de ensino o que prevalece entre professores é o regime de hora-aula. Por causa desse sistema, as IES possuem um número elevado de empregados contratados e, portanto, um índice alto de registros no Cadastro Geral de Empregados (Caged ), usado como base de cálculo pela lei. Essa conta torna obrigatório empregar uma quantidade maior de deficientes, o que, segundo as IES, é muito difícil dada a escassez de mão-de- obra qualificada no mercado. “Se eu tenho mil professores, terei de contratar 50 com necessidades especiais. Eles têm que ter especialização, o que é difícil de encontrar atualmente”, analisa José Roberto Covac, assessor jurídico do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp).
Outra peculiaridade do regime de contratação nas IES é o fato de o coordenador de curso ser também professor e ter dois contratos junto à instituição, por força do que estabelece a convenção coletiva de trabalho. Sendo assim, ele representará dois registros no Caged, elevando ainda mais a cota que a IES deverá reservar à contratação de deficientes.
“Trata-se de uma lei burra, pois não há a previsão de uma regulamentação das exceções. De fato, existem setores que têm muita dificuldade de cumprir a lei pelo ramo de atividade que exercem”, explica o advogado trabalhista Gustavo Granadeiro Guimarães. Ele cita, como exemplo, as empresas de siderurgia, que podem colocar em risco os deficientes recrutados por força da lei. No caso das IES, o que emperra muitas vezes a contratação é, como já foi dito, a baixa qualificação dos candidatos, principalmente para ocupar as vagas de professores. São postos de trabalho que exigem, no mínimo, um diploma de mestrado, qualificação rara entre os deficientes.
Mesmo com as distorções apontadas, a lei está em vigor e há poucas opções senão cumpri-la. Para não atuarem na ilegalidade, as IES têm buscado maior flexibilidade na sua interpretação. A proposta, no entanto, vem encontrando resistência no Ministério Público do Trabalho (MPT), um dos responsáveis por fiscalizar as relações entre empregados e empregadores.
“O MPT entende que existem certos cargos em que é mais difícil encontrar profissionais capacitados. Mas entende que também é difícil encontrar pessoas que não tenham deficiência com qualificação exigida”, argumenta a procuradora Adélia Augusto Domingues, que compõe o Núcleo de Combate à Discriminação da Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região, setor da Justiça do Trabalho que abrange a Região Metropolitana de São Paulo e a Baixada Santista. “Já imaginou se cada categoria que tiver dificuldade em contratar deficientes capacitados pedir para alterar a base de cálculo?”
Segundo a procuradora, as empresas têm uma responsabilidade social. “Se não encontram mão-de-obra qualificada, elas têm que qualificar esta mão-de-obra”, indica. Ela cita o caso de outras empresas fora do ramo da educação que destinaram verbas para a capacitação, como bancos e hospitais.
Atualmente, o Ministério Público do Trabalho tem em andamento 327 procedimentos de investigação contra empresas de todos os setores para averiguar a contratação de deficientes. Já foram lavrados 269 termos de compromissos de ajustamento de conduta, pelos quais as empresas estabelecem metas para cumprir a lei. O MPT já propôs na Justiça 25 ações civis públicas contra quem não se adequou. Dados da Delegacia Regional do Trabalho em São Paulo, órgão do Ministério do Trabalho, apontam que cerca de 45% das empresas privadas do Estado de São Paulo – em todas as áreas – ainda não cumprem as cotas.
Os acordos são um caminho para obter um respiro na disputa com Ministério Público do Trabalho, aponta o advogado trabalhista Gustavo Granadeiro Guimarães. Ele entende que há pouco espaço para flexibilização da regra. “Não cabe ao MP julgar a lei, o papel dele é fazer cumprir a lei. O que pode dar uma amenizada no rigor são os acordos com os sindicatos das categorias para que haja um período de adaptação ou para que a empresa monte cursos de capacitação profissional”, diz.
Negociação
Para dar uma solução ao caso sem que seja necessário alterar a lei, as instituições de ensino organizaram uma Comissão Permanente de Negociação, composta pelo Semesp e por entidades que representam os funcionários: Sindicato dos Auxiliares de Administração Escolar de São Paulo (Saaesp), Federação dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo (Fetee) e Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp).
A proposta sugere a mudança na interpretação da lei. Pretende usar como referência para a base de cálculo a carga horária semanal, e não mais o Caged. Diversas reuniões já foram realizadas com a Delegacia Regional do Trabalho, que se mostrou aberta ao diálogo, segundo o assessor jurídico do Semesp José Roberto Covac. Um encontro com o Ministério Público do Trabalho foi realizado no dia 25 de julho último. Ficou estabelecido o prazo de 30 dias para uma resposta ao acordo coletivo proposto pela comissão. Três dias antes do cumprimento do prazo, no entanto, o Semesp foi surpreendido por um ofício de repúdio ao acordo assinado por Roberto Rangel Marcondes, procurador-chefe do MPT na 2ª Região.
Em reunião posterior com a Delegacia Regional do Trabalho, ficou acertada a marcação de novo encontro com o MPT. Procurada pela reportagem, a sub-delegada da DRT, Maria Elena Taques, que está acompanhando o caso, é cuidadosa ao falar sobre o assunto, já que o processo ainda está em andamento. Ela confirma que uma nova reunião será marcada para outubro, mas evita detalhar a posição do órgão na negociação. “A função do DRT é de aproximar as partes”, afirma.
“Houve uma evolução da discussão junto à Delegacia Regional do Trabalho. Mas não adianta fazer um acordo com a Delegacia se não há a concordância do MP”, aponta Covac. Na prática, o que acontece é que os órgãos envolvidos são independentes e entendem de formas diferentes a aplicação da lei. O advogado lembra que, mesmo que seja firmado um acordo com a DRT, o MP pode pedir sua anulação na Justiça, como aliás já afirmou que faria o procurador-chefe, no ofício citado anteriormente. “Há dissonâncias entre os órgãos”, diz o advogado.
A discussão sobre o cumprimento da lei ganhou corpo há cerca de três anos quando as Delegacias Regionais do Trabalho começaram a fiscalizar as instituições de forma sistemática, realizando termos de compromissos de ajustamento de conduta e, até mesmo, autuando as IES. Segundo Covac, uma única multa pode chegar a R$ 1,5 milhão.
Enquanto não se chega a um acordo sobre a mudança na base de cálculo, algumas instituições se mobilizam para dar soluções internas ao caso. A Universidade de Guarulhos, multada em R$ 90 mil este ano, está alterando layouts de departamentos e remanejando alguns quadros de funcionários para atender à legislação. “Estamos transferindo algumas funções para outros funcionários, e deixando livres outras, como aquelas de teleatendimento, nas quais o funcionário só precisa atuar em frente ao micro”, afirma Sebastião Lacarra, pró-reitor administrativo da UnG. Segundo o dirigente, nenhuma nova vaga foi criada para abrigar os deficientes. Um dos últimos reposicionamentos colocou uma funcionária cega no cargo de ombudsman na secretaria-geral da instituição.
A Universidade de Guarulhos contrata hoje 23 empregados com deficiência. Pela lei, sua cota deveria ser de 55. “Como educadores poderíamos prepará-los para irem para o mercado de trabalho. Isso poderia nos ser exigido. Sendo assim, não deveríamos ter também a função de contratar. A lei deveria cobrar de outra forma as empresas que já fazem capacitação”, sugere Lacarra.
A Unicsul enfrenta problema parecido. Lá, atualmente existem sete funcionários com deficiência, quando a lei indicaria a contratação de 43. A instituição já foi autuada no final do primeiro semestre – o valor não foi revelado. Para Valéria Cristina Fidélis, supervisora de planejamento de RH da universidade, os departamentos técnicos e administrativos são os que concentram a maior parte dos atuais empregados deficientes. “É raro aparecer esse profissional mais qualificado”, afirma.
Além do trabalho interno de comunicar a abertura de processos de seleção – que são abertos para profissionais com ou sem deficiência -, a instituição faz a divulgação externa, em jornais, e contato com organizações não-governamentais e entidades que apóiam o deficiente. Mas nem sempre obtém resultados satisfatórios: “O retorno [das entidades] é muito baixo às nossas ofertas”, afirma.
Novo mercado
Com o início das autuações, as empresas correram para contratar deficientes e cumprir suas cotas. Esse movimento gerou forte demanda por deficientes capacitados, e surgiram também muitas entidades para ajudar no posicionamento desses profissionais e no recrutamento das empresas. Na visão do advogado do Semesp, José Covac, criou-se uma “máfia” das entidades e ONGs de apoio a deficientes.
Para Elisabeth Federici, coordenadora de capacitação e orientação de trabalho da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de SP (Apae-SP), a Lei de Cotas trouxe visibilidade para a questão. “Muitas entidades nos procuram pedindo para transferirmos nosso banco de dados”, afirma.
A entidade é contratada por empresas para fazer o mapeamento das funções que são compatíveis com um portador de deficiência mental. De posse desse mapeamento, a empresa que deseja contratar uma pessoa aciona a Apae, que irá verificar dentro do programa de capacitação quem está mais apto para ocupar aquela vaga. Feita a contratação, o profissional será assistido durante um ano pela entidade, que também fará trabalho de conscientização junto aos funcionários da empresa contratante.
“Conheço empresas que não quiseram investir nesse processo da Apae e que procuraram fazer de outra forma. Um ano depois, vieram conversar novamente conosco. Poucas entidades fazem um trabalho de capacitação e acompanhamento”, conta. Atualmente, o projeto da Apae-SP – que completará três anos em dezembro próximo – capacita pessoas a partir dos 16 anos. No total, 575 deficientes já foram posicionados no mercado. A previsão é que esse número chegue a 600 até o final do ano, uma média de 200 pessoas incluídas por ano.
Uma das propostas de acordo sugeridas pelo Semesp, além da mudança na base de cálculo, prevê um prazo de dois anos para que as instituições contratem professores. Outra proposta é a criação de cadastro para haver o controle da contratação de professores e, ao final do prazo de dois anos, avaliar a aplicabilidade da legislação.
O Semesp já calculou os prejuízos que podem ser causados caso a interpretação da lei continue como está. Um dos problemas levantados é a demissão de professores para concentrar a carga horária em um número menor de profissionais e diminuir a base de empregados no Caged. Desta forma, as instituições terão de optar por professores que ministrem mais de um tipo de disciplina.
Projetos de inclusão desenvolvidos pelas IES, contraditoriamente, também sofreriam abalos. Convênios com entidades deverão ser cortados para cumprir da Lei de Cotas. “As instituições de ensino não são contra a inclusão, tanto que têm vários trabalhos de inclusão. Entretanto, é difícil a aplicabilidade dessa lei”, aponta Covac. A disputa com o Ministério Público do Trabalho ainda terá mais capítulos, resta agora acompanhar o seu desfecho.
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BONINO, Rachel. “Cotas da discórdia”. In: Revista Ensino Superior. Disponível em: <http://revistaensinosuperior.uol.com.br/textos.asp?codigo=11842>. Acesso em: 08 nov. 2010.
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